Renato Negrão
Antelóquio por ocasião das comemorações do centenário de morte de um poeta vivo. / Makely Ka (2008).
Caso estivesse vivo, o poeta Renato Negrão estaria completando um século de poesia e lirismo. Como, contudo, ainda não morreu, ele comemora solitário alguns míseros anos de sobrevivência e intensa atividade poética. Aliás, nunca soube de outro poeta que tenha chegado vivo à comemoração de seu centenário, seja em caso de vida ou de morte.
O indivíduo em questão constitui assim um paradoxo aparentemente insolúvel dentro dos parâmetros pragmáticos da biologia moderna; grande poeta que é e consciente, ele próprio, da importância de seu cadáver no mausoléu da melhor tradição poética em língua portuguesa, sabe que não pode abrir mão disto que alguns vão considerar mera formalidade, vaidade ou capricho, a saber: sua morte incondicional. Por outro lado, vivo da silva e, ainda por cima, produzindo como um louco, bradando a cores e ao vivo seus poemas nos ouvidos surdos de seus contemporâneos, o dito cujo sequer pode ser considerado poeta, muito menos um bom poeta.
O fato de estar vivo, e, o que é ainda pior, em atividade, impossibilita, portanto, qualquer tentativa de distanciamento crítico, exclui, quase que por completo, a viabilidade de uma tese acadêmica e, enfim, invalida qualquer investimento no sentido de uma avaliação mais objetiva de sua vida e obra. Fica o vivente, dessa forma, por justa causa, ausente de toda e qualquer antologia de poesia dentro do panorama literário atual, devendo contentar-se com uma ou outra nota, ainda que depreciativa, no segundo caderno de algum jornal local de circulação diária. Já morto, o inconveniente seria continuar escrevendo poemas a esmo. Desnortearia por completo a crítica. Ora, um poeta, no final das contas, não precisa ter deixado uma obra volumosa para que seja considerada grande. Veja-se, por exemplo, o caso de um Isidore Ducasse ou de um Georg Trakl. Também não precisa ter sido reconhecido por seus contemporâneos e pode até mesmo ter sido ignorado até por várias gerações consecutivas, como um Sousândrade, um Yi Sáng. Pode, inclusive, ter morrido praticamente inédito, como um Kilkerry, um Fernando Pessoa da vida, mas, sobretudo, tem de estar morto.
A obra tampouco necessita estar acabada, nem carece de coerência interna, unidade temática, e pode também apresentar altos e baixos, seja lá o que esses critérios de avaliação representem nas mais diversas épocas e contextos. Agora, algo realmente inaceitável é o abandono radical da atividade poética em vida. Mesmo Rimbaud, retirando-se, estrategicamente, para a Abssínia num momento fulcral de suas atividades poéticas, não escapou ao distanciamento crítico de seus contemporâneos, à exceção de Verlaine, é claro, e o fato tornou-se somente um dado curioso de sua biografia póstuma. Portanto, o abandono puro e simples de uma carreira literária não garante reconhecimento imediato e, muito menos, apaga a existência literária de um poeta. Ora, se suas atividades pudessem ser consideradas estanques, definitivamente concluídas, poderia se pensar em algum tipo de reconhecimento mórbido em vida. Mas, pelo simples fato do cidadão, sem qualquer cerimônia, num dia qualquer, sem mais nem menos cometer, inadvertidamente, um poema tudo estaria perdido.
A mera possibilidade de que isso aconteça provoca uma violenta reação involuntária no mundo literário. Só de pensar que alguém pode, com um simples poema, por a perder todo um arsenal argumentativo consolidado, toda uma empresa corroborada em congressos e comunicações públicas, todos os homens de letra tremem e babam. Por isso, uma tal atitude de tamanha irresponsabilidade e total falta de consideração para com o trabalho de pessoas sérias é severamente repudiado por todos os homens de bom senso. Nesses casos, nem adianta um juramento de pés juntos lavrado em cartório, com o poeta dando sua palavra de que nunca mais cometeria um verso sequer, pois sabe-se que esse tipo de gente não merece a menor confiança. Há casos documentados. Pois bem, retornamos ao ponto inicial; estando Renato Negrão tão morto quanto vivo, conceder-se-ia ao poeta a condição limite de um morto-vivo. Diante de tal contrassenso, resta ao leitor por fim, pela saúde de nossas letras, dar seu parecer definitivo: deve-se matar o poeta que ainda vive ou ressuscitar o poeta morto? Cartas à redação.
